JC/Opinião - 23/12/2012
Catando
as migalhas de tempo sob a mesa do ano o homem sabe que caminhar - mesmo para
os ponteiros, que não viajam nem descortinam paisagens - é ofício indeclinável.
Não há coragem inerte.
A
repetição das coisas miúdas, o vento que sopra pela casa, o rufar das panelas,
o pijama e o nó da gravata, essas coisas que são personalíssimas, como
espreguiçar-se, bocejar, sonhar, ajudam a compreender que o tempo também se faz
das migalhas. Foi juntando migalhas de minutos, frações de segundo, olhos
piscando, que percebi a eternidade que há no instante. Nada como as folhas que
despencam dos galhos, bailando a dança do outono. Nada como o efeito do sol na
água, bolhas coloridas sopradas do canudo do relógio. Juntando as folhas e as
migalhas, diante de mim o mundo se desvendou.
Caminhar,
caminhar é preciso, mesmo que a miragem da chegada seja uma cilada do destino,
um preço, o Fausto que nos ronda. O arco-íris é fruto dessa perplexidade
benfazeja. Caminhar, mesmo sobre os lençóis amarfanhados, a barba por fazer, os
cantos do rosto com a marca do tempo, sorvendo a vida em pequenos goles, que o
melhor vinho deve ser degustado em silêncio. Quem não tem cotidiano não
especula com a eternidade. Só quem entende de moscas entende de vacas. Por isso
que os orientais são minimalistas, descobrem a floresta investigando a árvore,
enxergam a Via-Láctea na chama de um fósforo. Como ver beleza na aurora se não
se ocupam os homens de abrir as janelas, descerrar as cortinas e deixar entrar
a alvorada? É preciso paciência de canário para herdar o gorjeio, testá-lo de
um lado da boca, sacudi-lo do outro lado, pesar na balança da consciência, a
fim de criar intimidade entre a boca e a voz, entre o vento e a caverna que lhe
molda. Criar a intimidade da carne com os dentes, deixar a voz dormir na boca,
medir com a língua todos os timbres até alcançar o trinado certo para uma manhã
de domingo. O trinado de um canário que aprendeu com Jó a dedicar-se ao ofício
da paciência e a certas coisas invisíveis. É preciso ouvir para palrar.
Aqueles
que são imersos em si próprios, mergulhados com narciso num lago de enganos,
declinam da vertigem que é um planeta novo, um asteroide que cruza o céu, uma
colina de onde se divisa a linha do horizonte, declinam, imprevidentes, de ver
além do espelho, nas costas do espelho, por trás da imagem refletida na água.
Renunciam a terraços brancos sobre mares azulados, a mesquitas cheias de
mistério, a tribos de nômades que vivem de comer raízes, a algo que excite a
mente, que sacie a ânsia de conhecer o outro lado do mundo, ainda que seja
apenas o quintal do vizinho, seu cachimbo no fim da tarde, a lenha que crepita
numa casa de sertão, como na Rússia de invernos rigorosos. O mundo é vasto como
a imensidão do pensamento. Naquele quintal onde conviviam patos e carneiros, em
meio a pneus desordenados, acumulando água de chuva, fechava os olhos para
ouvir o barulho da biqueira escorrendo, o som dos grilos declamando fados para
as estrelas e os sapos coaxando como um coral de crianças que perdem a ilusão
de Noel e depois, de ilusão em ilusão, quase perdem a esperança.
Caminhar
é preciso para alimentar-se do pão da estrada, esse trigo que esfarela nas mãos
como a areia de um oásis, que é a mesma areia que queima no deserto.
Bicando o
chão da mesa do ano mordo os últimos instantes, com a fome de juntar os pedaços
do mapa e de ver onde está enterrado o tesouro do futuro. O canário imaginário
passeia sobre o que vê. Enxerga lagartixas correndo entre pequenas pedras e
descobre que ainda há tempo para visitar um amigo.
Tadeu
Alencar é secretário da Casa Civil de PE