sexta-feira, 27 de abril de 2012

A cidade e o leão (P/Tadeu Alencar), JC, 27/04/2012

Para compensar não ter nascido no Recife Deus há de me conceder a graça de morrer no Recife. Se não me quiserem conceder digna sepultura, como impuseram a Abreu e Lima, hei de cobrar caro a desfeita de ver-me impedido do derradeiro prestígio. Ou me deixam morrer sossegado, em algum Bairro do Recife e me permitem adormecer sob algum gramado silencioso, recheado de plátanos, ou voarei insepulto, sobre as eras, como um morcego a que lhe arrancaram os doces olhos.
Escolher uma cidade para morrer é uma rendição, uma sucumbência, um aniquilamento confesso. Declarar-se a uma cidade para na morte unir-se a ela, para desposá-la sem pudores é uma declaração de amor desenfreada. Um cavalo sem rédeas. Um suicídio venturoso, conquanto involuntário. É que o Recife não comporta comedimentos incompatíveis com a sua grandeza. Não transige com a etiqueta dos talheres cívicos. Na cidadela da liberdade tudo é largo. Fora os becos estreitos – bordados de amores proibidos do velho Recife  e de algumas ruas de São José e outras ainda, no entorno da Ponte Velha, nesta Vila Real do Recife, rodeada de pedras e de azulados pedaços de céu, tudo é largo. O barco do barqueiro é largo, quando acena para o cargueiro com que cruza na boca da barra. É largo também o gesto do poeta que ao morrer deixa um punhado de versos com que pagou a saudade dos que esperavam verso e instante. Eles que, privados do corpo, viram a alma manifestar-se através da carne trêmula da palavra. Carlos, Pena no nome e Daniel, pena no verso, foram honestíssimos até o fim. Um fez versos e morreu cedo. Pagou antecipada a sua dívida. O outro viveu longe e antes de morrer pensou: poemas na gaveta são peixes mortos no aquário. Morrer é certo. Cuidemos dos sonetos. Eles alimentam uma carne diferente. Tudo é largo no Recife: as insurreições, as rebeliões, os duelos amorosos, a vontade férrea de seus líderes e o sol luminoso que sempre cobriu Pernambuco. No território indômito da muralha de arrecifes, fortaleza de guerreiros e profetas, só é permitido que se lhe exalte a condição de cidade livre, que vigia, zelosa, a conduta de seus habitantes. Um filho do Recife sabe que é crime pecar contra a liberdade. São quinhentos anos de estética da luta. Na velha aldeia de pescadores, os dez mandamentos estão escritos assim, no horizonte: Aqui, neste sítio de homens de mar e de açúcar, vige uma única regra: a coragem, mãe e filha da liberdade! Todo o código de conduta social, moral e jurídico afirma esse vetor de matiz constitucional e mantém ereta a espinha dorsal dos recifencisados, os que tiveram na vida  como eu  a sina e o privilégio de nascer ou viver no Recife.
Aqui, é execrado aquele que conspurca os deveres seminais. Recife é dos lugares onde cada esquina espirra sangue de um herói morto na batalha. Não há espaço para deserção, acostumado que é a lutar de frente, com luvas. Terra de guerreiros. Recife dos poetas, dos artistas, dos pintores, dos homens do povo acostumados a defender o solo sagrado dos heróis. Cidade cruel, lendária, invicta! Em especial para proteger o leão ferido, prova de bravura e resistência. Um bom símbolo: uma cidade invicta e um leão ferido.
Tadeu Alencar é secretário estadual da Casa Civil

terça-feira, 3 de abril de 2012

A vida é líquida (P/ Tadeu Alencar)

JC, 03/04/2012

Água é encanto. Basta ver a placidez de um peixe num aquário. Ou o relaxamento do nascituro no útero, olhos fechados de entrega naquela grande barriga-d"água.
Tanto faz se estamos a falar dos lagos chilenos, com aquele verde esmeralda, de cobra em estado de alerta, ou do Mar Egeu, com aquela cor indefinível de burro sob a chuva, orelhas murchas, imóvel como a guarda do Vaticano. Tanto faz se olhamos o Estreito de Bósforo, separando dois continentes, ou se molhamos os pés na levada da serra, de diminuta extensão.
Cuide-se das Cataratas de Foz do Iguaçu, do Niágara, de Paulo Afonso, das cachoeiras que descem todas as montanhas da América e da Ásia ou dos córregos que serpenteiam as roças de milho no sertão invernal. Água é água, é sempre um bálsamo.
Cuide-se de qualquer dos rios do planeta, o Nilo, o Volga, o Danúbio, o Sena, o Tejo, o Tevere, o Ganges, o Mekong, o Reno, o Amstel, o Orinoco, o Amazonas, o São Francisco, o Brígida, o Capibaribe, sempre haveremos de olhá-los com reverência, como a um tesouro natural a ser preservado e protegido, recuperado, quando a ação torpe dos homens os tenha degradado.
A visão da água é sempre benfazeja: seja a chuva que bate na janela, o homem recostado na poltrona curtida pelos anos, pijama de flanela, samovar fumegante, flores do campo no vaso da mesa, charuto macio entre os dedos, ou o próprio homem na chuva, o nariz esmagado na janela, encharcado de alegria juvenil, olhando as flores lá dentro, o vaso, a poltrona, à espera de alguém que lhe pudesse perceber a alegria de estar molhado, ou a ventura de, seco, olhar a vida molhada lá fora, a relva salpicada de brilhantes, os insetos em festa, a luz formando pequenos e multicoloridos arcos de luz, iridescentes, particulares, assombrosos, se nos ocupamos das pequenas coisas.
Vivemos em uma cidade de braços líquidos, o Recife. E como tal uma cidade flutuante, especial, em que o parentesco com as águas é uma condição natural, assim como as inundações. Muito tempo o boi morto percorreu o desfile macabro nas ruas alagadas do Recife, por força das cheias. Veio o tempo em que os gestores públicos se viram compelidos a cumprir o seu papel e as cheias sumiram, o boi agora, só no pasto, gordo, aguardando, sereno, o seu abate.
Domingo saí de barco do Cabanga em direção ao Litoral Norte o que me permitiu voltar a sentir como a cidade flutua refestelada em sua cama líquida e como é urgente o resgate dessa vocação de convivência estreita com as águas, dessa vocação fluvial, náutica, de coral, que tem a penitenciária adorada, a cidade do Recife.
É um deleite ver o recorte da cidade, os armazéns do cais José Estelita, o recorte que os telhados sequenciados fazem com as torres das igrejas, num conjunto de rara beleza. Um deleite ver da água, a praça onde começa o mundo, os navios, o casario do porto, a Torre Malakoff, o prédio da delegacia fiscal, a capitania dos portos, o velho moinho...
A água como sentido e propósito.
De seu turno não há celebração possível sem um trago, a felicidade líquida de um cálice de um bom vinho ou as estrelas borbulhando do segredo dos abades. Das montanhas de Glasgow, para quem aprecia, dos regatos da Bélgica abastecendo a fermentação dos cereais, seja em que forma for – felizmente – a vida é líquida.

Tadeu Alencar é procurador da Fazenda Nacional e secretário da Casa Civil

domingo, 1 de abril de 2012

Primeiro navio de Suape no mar


JC, 01/04/2012
Adriana Guarda - adrianaguarda@jc.com.br

O João Cândido navegou. Após três anos e meio em construção no Estaleiro Atlântico Sul (EAS), o primeiro petroleiro pernambucano deixou, ontem, o Porto de Suape para realizar sua prova de mar. O teste vai avaliar as condições operacionais do navio antes de ser entregue à Transpetro. A manobra de desatracação começou por volta das 8h30, com o apoio de quatro rebocadores. Uma hora depois, a repetição do apito (ritual da indústria naval) anunciava a partida da embarcação. Nesse momento, espectadores, funcionários e diretores do empreendimento não disfarçaram a emoção. A despeito dos problemas e atrasos, o navio carrega os sonhos e um pedacinho de cada profissional que deu sua contribuição.

No momento da despedida, o presidente do Atlântico Sul, Agostinho Serafim, parabenizou e desejou sorte à tripulação. "Se Deus quiser vai dar tudo certo e vamos esperar vocês aqui com um frevo", disse. A embarcação saiu com 120 profissionais a bordo, entre tripulantes, funcionários, representantes do armador (Transpetro) e dos fabricantes dos equipamentos, além de fiscais da sociedade classificadora American Bureau Of Shipping (ABS). O João Cândido vai ficar fundeado (atracado) por três dias a quatro milhas (sete quilômetros) da costa pernambucana para fazer os testes iniciais e depois vai seguir para Natal e Maceió, a 40 milhas da costa (70 km). Nesta fase vai realizar os testes de velocidade máxima, consumo de combustível, leme, zigue-zague e raio de giro. O retorno da embarcação não tem data certa, porque vai depender dos testes, mas a expectativa é que a prova de mar seja realizada em até 15 dias.

EMOÇÃO

Com 30 anos de praticagem, Olavo Verçosa, foi o prático responsável pela manobra do navio. Fiquei honrado em manobrar o primeiro petroleiro do Estado. É importante dizer que o João Cândido navegou. Ele não foi apenas rebocado. Os motores e as máquinas funcionaram, destaca. Dois rebocadores acompanharam a embarcação até a área de fundeio e depois retornaram para o porto. A prova de mar seria realizada na quinta-feira passada, mas precisou ser adiada para ontem em função de problemas no motor principal da embarcação, que foram corrigidos antes da partida.

Agostinho Serafim explica que depois que voltar da prova de mar, o João Cândido retornará ao EAS para realização dos ajustes finais antes da entrega à Transpetro. O presidente da estatal, Sérgio Machado, disse em evento no Rio de Janeiro, que espera receber a embarcação ainda este mês, mas fontes do estaleiro acreditam que a entrega só deverá ocorrer em maio. O gigante João Cândido tem 274 metros de comprimento, 48 metros de largura, 51,6 metros de altura e capacidade para transportar um milhão de barris de petróleo.