Quem lavra, colhe
Já é dezembro e nem parece que o ano termina. Tantas tarefas a desempenhar,
intermináveis coisas por fazer, que parece estamos em março, não fora o calor
que não deixa margem à dúvida de que é verão. O ano de 2014 cambaleia, atacado
pelo tempo, açoitado pelo apetite das horas, mas reúne energia para seguir o
seu curso de pedras até dissipar o seu último cascalho.
Um ano que verte mel e fel, que pinga a alegria e a tristeza, como torneiras
que - pingando - nos dão a certeza de que estamos sempre sob o fio da navalha.
Um ano cheio de cicatrizes, o rosto cortado várias vezes pela lâmina que não
se cansa de rasgar a pele. A morte em sequência de Ariano Suassuna e Eduardo
Campos é uma peça que só se prega para corroer a fé dos crédulos e que só a
sina do sol, do couro e do sangue é capaz de decifrar.
Dantas Suassuna, debruçado sob o ataúde do pai, no Palácio do Campo das
Princesas, barba espessa, vestido com uma bata cerimonial, solitário,
emocionado, beato, rendia a sua última homenagem ao Imperador dos Sertões.
Inacreditável que em apenas 21 dias voltaríamos àquele salão onde Arraes
resistiu, no mesmo dia da sua morte, para receber no rosto o ferro em brasa da
Caetana cínica que abateu o líder.
A onça roedora - de olhos amarelos e pele esmaltada - que ataca as ovelhas
que pastam desatentas, avançou por sobre o terreiro da casa, a presa arrastada
na areia, o fundo do alpendre sem a rede estendida, uma tarde sem noite, longa,
incurável.
Ariano jamais voltaria a deitar-se no chão dos aeroportos, senão em nossa
memória que queima. Mas é preciso seguir, escolher do incêndio as coisas que
ainda possam ser úteis e tocar a caminhada.
Os céticos afirmam ser o fel apenas a obviedade da tragédia humana, mas
ainda há tanto por ser feito em matéria de esperança, que devemos fitar o céu
em momentos de cansaço e nele encontrar azulados lenitivos.
Daqui da varanda assisto ao ano dançar o seu canto do cisne, a coroação do
espetáculo do tempo. Olho a casa, em torno: caixas espalhadas, papéis,
charutos, documentos, retratos, o inventário dos últimos anos, os haveres e os
deveres escriturados nos bem-aventurados livros de anotações.
Muitas coisas aconteceram entre janeiro de 2007 e dezembro de 2014, que impactaram
o nosso tempo. Vimos a história escorrer diante dos olhos. Das coisas que
aconteceram, delas um dia hão de falar, pois ganharão a vivacidade da história
contada. É cedo, ainda.
Houve tristezas, perdas, lágrima, que a vida também é dor. Mas houve emoções
sem preço, coisas que fizeram o coração acelerar, a pupila crescer de tamanho,
a vida se transformar.
E é por esse quente-frio da vida, a chuva e o sol, as quatro estações, que a
cada enterro do ano, voltamos a ter grandes esperanças.
No bar próximo, jovens conversam animadamente, batem palmas, brindam e
celebram o tempo de renovação, de mudar a pele como as cobras, de trocar as
penas como as águias, que se reinventam no alto das montanhas.
Tadeu Alencar é deputado federal (PSB-PE) e procurador da Fazenda
Nacional