Duas mortes levaram-me a percorrer o labirinto familiar: a de Manoel
Vieira e a de Bazin. Nada tiveram em comum as duas mortes senão o luto
fechado de uma cidade açoitada pelo vento.
A de Manoel Vieira foi
uma morte bela. Uma morte negra, de capa negra, de laço negro. Uma
morte elegante, silenciosa e ensurdecedora como a mais torrencial das
óperas de Wagner.
Sua morte não quis público. Não causou alarido,
pânico, desmaios. Convidado pelo pressentimento de que ainda antes da
aurora uma revoada de corujas anunciaria o seu impávido passamento Manoel Vieira sentou-se à cama.
Não tinha o olhar transido dos
condenados à morte, olho de peixe vivo, olho de peixe morto. Coçou o
rosário de osso no bolso do camisão a buscar refúgio numa fé que não
tinha.
Consultou a madrugada lançando à casa um olhar de quem se
despede: deteve-se no cedro das ripas, nos tachos de ferro onde a
cabroeira do cangaço se lambuzara de coalhada, no relógio torto da
parede, prestes a esfacelar sua última fração de tempo.
Não
desgrudou do relógio, viu-o extinguindo o último ânimo de sua
engrenagem, como se uma mola distendesse ao extremo, à imobilidade.
1920! Um relógio caindo da parede. Um homem prisioneiro do dia da sua
morte, encurralado pelo seu destino. Fechando a porta dos fundos pôs a
capa negra, as botas, o chapéu.
Foi ao encontro da morte como aos
braços de uma mulher: preparou-se para o apertado enlace com uma fêmea a
quem jamais vira de tão singular mas de todos conhecida de tão
vadia.
Sentiu um arrepio quando o vento cortante arreganhou a copa
do ficus plantado no meio da rua e a solidão cobriu seu rosto, pela
última vez anuviado. Não sentiu medo, mas um calafrio.
Manoel
Vieira sabia que aquela morte, não sendo a primeira, não poderia ser a
última e isto o angustiou... Mas enfrentaria o seu touro na arena.
Cobertas pela miopia das gerações as pegadas de Manoel Vieira se punham
ao perigoso alcance do esquecimento: ignorado o seu desejo irrefragável
na madrugada de negro cetim, esquecidas a elegância, as luvas, a capa...
Quase
de nenhuma valia o arrojado gesto senão para abrir uma ferida na
história e fincar um marco que permitisse ao futuro e, por extensão, ao
passado, penetrar no intrincado caleidoscópio familiar.
Fiquei
pensando nas razões que levaram Manoel Vieira a tomar dos arreios de
sola nova, pendurados no armazém, envolvendo o próprio pescoço com as
tiras grossas de couro, com solene calma, com quase desleixo, mas
firmemente, sentindo o nó roubar-lhe a vista, fiquei pensando na
vertigem que sentiu Manoel Vieira quando saltou para o nitrogênio do
nada, o mundo ali embaixo, visto de cima pela última vez. E foi pensando
na fresta de luz que banhou o seu rosto aliviado na descontrolada hora,
que corri a destrincar esse novelo infindável da memória.
Na
morte premiou-se com o recolhimento, gozando da quietude de sua própria,
notado que foi tão-somente , pelo sol alto das nove horas. Um banco
caído, um homem vestido de preto, de luvas pretas, de capa preta, de
máscara, fruindo a eloquência do seu indelicado gesto.
A porta
entreaberta deixa entrever ovelhas que passam com seus guizos,
desatentas. Alguém passa na rua fumando um cigarro de palha, indiferente
às corujas bisbilhotando das janelas, insones, em festa.
Manoel
Vieira, então, encurralado, fecha os olhos quando adentram o armazém e a
fúnebre notícia já invadira a praça no cheiro doce de sensíveis
alfazemas.
Tadeu Alencar é procurador da Fazenda Nacional e secretário da Casa Civil