domingo, 27 de maio de 2012

O Calvário de Manoel Vieira (P/Tadeu Alencar, JC, 24/05/2012)

Duas mortes levaram-me a percorrer o labirinto familiar: a de Manoel Vieira e a de Bazin. Nada tiveram em comum as duas mortes senão o luto fechado de uma cidade açoitada pelo vento.
A de Manoel Vieira foi uma morte bela. Uma morte negra, de capa negra, de laço negro. Uma morte elegante, silenciosa e ensurdecedora como a mais torrencial das óperas de Wagner.
Sua morte não quis público. Não causou alarido, pânico, desmaios. Convidado pelo pressentimento de que ainda antes da aurora uma revoada de corujas anunciaria o seu impávido passamento Manoel Vieira sentou-se à cama.
Não tinha o olhar transido dos condenados à morte, olho de peixe vivo, olho de peixe morto. Coçou o rosário de osso no bolso do camisão a buscar refúgio numa fé que não tinha.
Consultou a madrugada lançando à casa um olhar de quem se despede: deteve-se no cedro das ripas, nos tachos de ferro onde a cabroeira do cangaço se lambuzara de coalhada, no relógio torto da parede, prestes a esfacelar sua última fração de tempo.
Não desgrudou do relógio, viu-o extinguindo o último ânimo de sua engrenagem, como se uma mola distendesse ao extremo, à imobilidade. 1920! Um relógio caindo da parede. Um homem prisioneiro do dia da sua morte, encurralado pelo seu destino. Fechando a porta dos fundos pôs a capa negra, as botas, o chapéu.
Foi ao encontro da morte como aos braços de uma mulher: preparou-se para o apertado enlace com uma fêmea a quem jamais vira de tão singular mas de todos conhecida de tão vadia.
Sentiu um arrepio quando o vento cortante arreganhou a copa do ficus plantado no meio da rua e a solidão cobriu seu rosto, pela última vez anuviado. Não sentiu medo, mas um calafrio.
Manoel Vieira sabia que aquela morte, não sendo a primeira, não poderia ser a última e isto o angustiou... Mas enfrentaria o seu touro na arena. Cobertas pela miopia das gerações as pegadas de Manoel Vieira se punham ao perigoso alcance do esquecimento: ignorado o seu desejo irrefragável na madrugada de negro cetim, esquecidas a elegância, as luvas, a capa...
Quase de nenhuma valia o arrojado gesto senão para abrir uma ferida na história e fincar um marco que permitisse ao futuro e, por extensão, ao passado, penetrar no intrincado caleidoscópio familiar.
Fiquei pensando nas razões que levaram Manoel Vieira a tomar dos arreios de sola nova, pendurados no armazém, envolvendo o próprio pescoço com as tiras grossas de couro, com solene calma, com quase desleixo, mas firmemente, sentindo o nó roubar-lhe a vista, fiquei pensando na vertigem que sentiu Manoel Vieira quando saltou para o nitrogênio do nada, o mundo ali embaixo, visto de cima pela última vez. E foi pensando na fresta de luz que banhou o seu rosto aliviado na descontrolada hora, que corri a destrincar esse novelo infindável da memória.
Na morte premiou-se com o recolhimento, gozando da quietude de sua própria, notado que foi tão-somente , pelo sol alto das nove horas. Um banco caído, um homem vestido de preto, de luvas pretas, de capa preta, de máscara, fruindo a eloquência do seu indelicado gesto.
A porta entreaberta deixa entrever ovelhas que passam com seus guizos, desatentas. Alguém passa na rua fumando um cigarro de palha, indiferente às corujas bisbilhotando das janelas, insones, em festa.
Manoel Vieira, então, encurralado, fecha os olhos quando adentram o armazém e a fúnebre notícia já invadira a praça no cheiro doce de sensíveis alfazemas.
Tadeu Alencar é procurador da Fazenda Nacional e secretário da Casa Civil