terça-feira, 3 de setembro de 2013

O amor sem palavras

Por Tadeu Alencar, em JC/Opinião 30/08/2013

É bom o calor das multidões. Nas romarias de Juazeiro gostava de serpentear entre os nordestinos de chapéu de palha, que acorriam à meca de desassistidos e aventureiros em busca de um milagre. Menino curto gostava de ver os tipos, pois sempre entendi que as savanas são savanas porque existem os leões e as zebras. Não apenas porque são bonita paisagem. Homens de rosto curtido de sol, marcados pelos anos de estio, a barba hirta, olhos transidos de uma fé impotente. Roupas de algodão e de brim, alpercatas de couro curtido, como se o homem não fosse mais que um mero produto do seu meio. Também se viam muitas mulheres, austeras, mas sempre em bando, cobertas de pano, feito batinas femininas, como na Judéia, o lenço na cabeça vindo até o meio da testa, escondendo a metade das orelhas.
Olhava em torno, os olhos batendo no umbigo das pessoas e pensava que o mundo era aquela coleção de pernas de todas as cores e suas mãos crestadas.
Juazeiro era uma espécie de promessa para muitos, desde o tempo em que o Levita, com uma rara habilidade para extasiar multidões, pregava da janela de casa - privado que fora do púlpito -, para legiões de sertanejos que lhe acorriam, ávidos por uma bênção, qualquer bênção, nem que fosse tocar os panos sacrílegos de Maria de Araújo.
Como não havia hotéis populares, as famílias alugavam suas casas aos romeiros. Era uma festa para o meu espanto de menino, ver a confusão ordenada, aquela profusão de sacolas, toalhas penduradas nos punhos das redes, comida feita em caldeirões, redes em cima dos paus-de-arara, embaixo deles, por toda a parte.
Quando raiava a madrugada ouvia-se o crepitar do fogo sobre as pedras frias do quintal.
Com as horas, iam os romeiros girando a conta do rosário, a tagarelar nas feiras, em busca de quinquilharias, de modelos de terço, imagens de santos, utensílios de flandres e barracas de comida.
Para os olhos do menino de curiosidade infinita, aquela mistura de sotaques, de harmônicos dialetos, aquela entrega ao momento e a uma crença difusa em um mito escondido, fazia-me pensar que a vida se passa do mesmo jeito, em toda parte.
Os comerciantes, babando de ganância, onerando as tabuletas, explorando a sede e a fome dos penitentes forasteiros, chegando ao cúmulo de vender-lhes água.
Os vivaldinos, prontos a exercitar os seus finos bigodes contra a honra e a economia populares.
Os crédulos, dando alpiste à esperança. Uns, por fé mesmo, por não suportar o escuro, as névoas da grande pergunta. Outros, esperançosos, por sentirem que o amor existe e é universal. O amor é a conta de todas as coisas.
Assim também ocorrera com as procissões, em dias de fervor religioso, gostava de ver as beatas passarem, contritas, velas e terço na mão, cantando benditos, críveis, por quanto é sagrado, que pagavam a prestação de diminuto lote no céu.
Em uma das procissões, lembro que era domingo e que por cima da multidão a santa balançava no andor, com um ar piedoso e uma ponta de medo. Subi o nível dos olhos para o céu à minha frente. O azul do céu era um azul desmaiado, celeste, levemente escandaloso, um azul que dormiu e que, desperto, tem prazer em ver decorrer o dia e a vida seguir o seu curso inexorável. Enquanto passa a procissão, vejo crescer o meu corpo e meus pensamentos. Olho fixo como quem despe a coisa que se vê e vejo que a tarde cai e verte um cicio irresoluto.
Gosto das multidões porque elas se falam sem palavras, feito os amantes que se amam mesmo quando lhes cortam a língua. A multidão é o amor sem palavras

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