sábado, 25 de fevereiro de 2012

Pernambuco mais alegre,

ARTIGOS - OPINIÃO JC, Tadeu Alencar, 24/02/2012

Tive a ventura na vida de dar com os costados no Recife. É destino. Destino bom. A primeira vez que o vi fiquei fascinado. Como nasci numa cidade marcada pelo burburinho das feiras e pelo fervor das procissões, senti-me imediatamente atraído pelo Recife dos mascates, pelas ruas estreitas do Bairro de São José, por aqueles sobrados magros, de cujas sacadas as famílias mexeriqueiras imolaram a honra de gerações de imprevidentes passantes.
Naquele tempo, magra também a mesada de estudante, deixava-me errar pelas cercanias do mercado de mesmo nome, só pelo prazer de revisitar os perfumes de minha infância: o alecrim, a alfazema, a cidreira, o hortelã, a erva-doce. Poderia ter os olhos vendados diante de um daqueles mercados de especiarias e reconhecer, um a um, os temperos impregnados em meu nariz desde o dia em que o meu pai, sentindo no vento um estranho odor de rosas, puxado a jasmim lavado de chuva, adivinhara a morte de tia Liu, sua mãe de criação.
Olhos vendados, narinas fremindo feito um cão farejador, ato contínuo reconheço a aquarela de temperos: pimentas vindas do reino, estragão, tomilho, cominho, folha de louro, canela, alfavaca, mostarda em grão, macela, boldo, orégano, raspa de umburana, cravo, gengibre, açafrão... Costumo dizer que não tive infância, mas um olfato que nasceu há muito tempo.
Depois do Recife dos mascates – cidade de múltiplos encantos – atraiu-me o Recife das revoluções. Em nenhuma outra cidade brasileira o gérmen da liberdade virou um surto epidêmico, como aqui se viu. Padres, magistrados, jornalistas, estudantes, homens de letras, militares, mulheres indômitas, todos acometidos de um mesmo mal: a intransigente defesa da liberdade. Por isso que a gema da nacionalidade, a ordem de todos os méritos, Guararapes, só poderia ter sido gestada nas planícies inundadas do Recife.
Sobre essa herança preciosa nada mais devo dizer senão que é aroma para ser aspirado com reverência, em silêncio, com a circunspecção devida a um amuleto ao qual se recorre, quando quarenta dias num deserto ameaçam vacilar a parca virtude que os deuses nos concederam.
O Carnaval só me viria em sequência, depois que o espírito já se vira cativo do Recife velho, do Recife das camboas e do Recife indomável. Eu que vinha de carnavais de clube e de um arremedo de Carnaval de rua, senti-me humilhado com a grandiosidade do Carnaval do Recife. Digo-o de Recife, mas não existe Carnaval do Recife, existe o Carnaval de Pernambuco, a monumental celebração popular em que se constitui o nosso Carnaval.
Olhando de qualquer ângulo da janela do observador, percebe-se que se está diante de um fenômeno cultural de raras proporções. Uma festa plural, libertária, colorida, irreverente, democrática, alegre, radicalmente alegre e incansavelmente criativa. Nela pontifica o folião anônimo, solitário, sem orquestra, a lata batendo, que se despe do terno de papelão amassado e veste a fantasia de príncipe, a caçar raposas imaginárias. Pontifica o homem da palha da cana, rosa na boca, com sua gola de maracatu ricamente bordada, entorpecido da beberagem de cachaça e chumbo, dançando sob um sol inclemente, a desfilar a sua majestade.
Pernambuco é insuperável em sua teia de manifestações: o caboclinho, o afoxé, o cavalo marinho, o samba de veio, os papangus, os caretas, a bicharada, a noite dos tambores silenciosos, os blocos líricos, os palhaços, os índios, os mascarados e o mais vibrante dos ritmos: o frevo. O frevo é uma espora afiada sobre a tristeza e o Carnaval, acreditem-me, a síntese da alma de Pernambuco, cuja cultura inunda o Brasil.
Tadeu Alencar é procurador da Fazenda Nacional e Secretário da Casa Civil

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