Para compensar não ter nascido no Recife Deus há de me conceder a
graça de morrer no Recife. Se não me quiserem conceder digna sepultura,
como impuseram a Abreu e Lima, hei de cobrar caro a desfeita de ver-me
impedido do derradeiro prestígio. Ou me deixam morrer sossegado, em
algum Bairro do Recife e me permitem adormecer sob algum gramado
silencioso, recheado de plátanos, ou voarei insepulto, sobre as eras,
como um morcego a que lhe arrancaram os doces olhos.
Escolher uma
cidade para morrer é uma rendição, uma sucumbência, um aniquilamento
confesso. Declarar-se a uma cidade para na morte unir-se a ela, para
desposá-la sem pudores é uma declaração de amor desenfreada. Um cavalo
sem rédeas. Um suicídio venturoso, conquanto involuntário. É que o
Recife não comporta comedimentos incompatíveis com a sua grandeza. Não
transige com a etiqueta dos talheres cívicos. Na cidadela da liberdade
tudo é largo. Fora os becos estreitos bordados de amores proibidos do
velho Recife e de algumas ruas de São José e outras ainda, no entorno
da Ponte Velha, nesta Vila Real do Recife, rodeada de pedras e de
azulados pedaços de céu, tudo é largo. O barco do barqueiro é largo,
quando acena para o cargueiro com que cruza na boca da barra. É largo
também o gesto do poeta que ao morrer deixa um punhado de versos com que
pagou a saudade dos que esperavam verso e instante. Eles que, privados
do corpo, viram a alma manifestar-se através da carne trêmula da
palavra. Carlos, Pena no nome e Daniel, pena no verso, foram
honestíssimos até o fim. Um fez versos e morreu cedo. Pagou antecipada a
sua dívida. O outro viveu longe e antes de morrer pensou: poemas na
gaveta são peixes mortos no aquário. Morrer é certo. Cuidemos dos
sonetos. Eles alimentam uma carne diferente. Tudo é largo no Recife: as
insurreições, as rebeliões, os duelos amorosos, a vontade férrea de seus
líderes e o sol luminoso que sempre cobriu Pernambuco. No território
indômito da muralha de arrecifes, fortaleza de guerreiros e profetas, só
é permitido que se lhe exalte a condição de cidade livre, que vigia,
zelosa, a conduta de seus habitantes. Um filho do Recife sabe que é
crime pecar contra a liberdade. São quinhentos anos de estética da luta.
Na velha aldeia de pescadores, os dez mandamentos estão escritos assim,
no horizonte: Aqui, neste sítio de homens de mar e de açúcar, vige uma
única regra: a coragem, mãe e filha da liberdade! Todo o código de
conduta social, moral e jurídico afirma esse vetor de matiz
constitucional e mantém ereta a espinha dorsal dos recifencisados, os
que tiveram na vida como eu a sina e o privilégio de nascer ou viver
no Recife.
Aqui, é execrado aquele que conspurca os deveres
seminais. Recife é dos lugares onde cada esquina espirra sangue de um
herói morto na batalha. Não há espaço para deserção, acostumado que é a
lutar de frente, com luvas. Terra de guerreiros. Recife dos poetas, dos
artistas, dos pintores, dos homens do povo acostumados a defender o solo
sagrado dos heróis. Cidade cruel, lendária, invicta! Em especial para
proteger o leão ferido, prova de bravura e resistência. Um bom símbolo:
uma cidade invicta e um leão ferido.
Tadeu Alencar é secretário estadual da Casa Civil
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