terça-feira, 3 de abril de 2012

A vida é líquida (P/ Tadeu Alencar)

JC, 03/04/2012

Água é encanto. Basta ver a placidez de um peixe num aquário. Ou o relaxamento do nascituro no útero, olhos fechados de entrega naquela grande barriga-d"água.
Tanto faz se estamos a falar dos lagos chilenos, com aquele verde esmeralda, de cobra em estado de alerta, ou do Mar Egeu, com aquela cor indefinível de burro sob a chuva, orelhas murchas, imóvel como a guarda do Vaticano. Tanto faz se olhamos o Estreito de Bósforo, separando dois continentes, ou se molhamos os pés na levada da serra, de diminuta extensão.
Cuide-se das Cataratas de Foz do Iguaçu, do Niágara, de Paulo Afonso, das cachoeiras que descem todas as montanhas da América e da Ásia ou dos córregos que serpenteiam as roças de milho no sertão invernal. Água é água, é sempre um bálsamo.
Cuide-se de qualquer dos rios do planeta, o Nilo, o Volga, o Danúbio, o Sena, o Tejo, o Tevere, o Ganges, o Mekong, o Reno, o Amstel, o Orinoco, o Amazonas, o São Francisco, o Brígida, o Capibaribe, sempre haveremos de olhá-los com reverência, como a um tesouro natural a ser preservado e protegido, recuperado, quando a ação torpe dos homens os tenha degradado.
A visão da água é sempre benfazeja: seja a chuva que bate na janela, o homem recostado na poltrona curtida pelos anos, pijama de flanela, samovar fumegante, flores do campo no vaso da mesa, charuto macio entre os dedos, ou o próprio homem na chuva, o nariz esmagado na janela, encharcado de alegria juvenil, olhando as flores lá dentro, o vaso, a poltrona, à espera de alguém que lhe pudesse perceber a alegria de estar molhado, ou a ventura de, seco, olhar a vida molhada lá fora, a relva salpicada de brilhantes, os insetos em festa, a luz formando pequenos e multicoloridos arcos de luz, iridescentes, particulares, assombrosos, se nos ocupamos das pequenas coisas.
Vivemos em uma cidade de braços líquidos, o Recife. E como tal uma cidade flutuante, especial, em que o parentesco com as águas é uma condição natural, assim como as inundações. Muito tempo o boi morto percorreu o desfile macabro nas ruas alagadas do Recife, por força das cheias. Veio o tempo em que os gestores públicos se viram compelidos a cumprir o seu papel e as cheias sumiram, o boi agora, só no pasto, gordo, aguardando, sereno, o seu abate.
Domingo saí de barco do Cabanga em direção ao Litoral Norte o que me permitiu voltar a sentir como a cidade flutua refestelada em sua cama líquida e como é urgente o resgate dessa vocação de convivência estreita com as águas, dessa vocação fluvial, náutica, de coral, que tem a penitenciária adorada, a cidade do Recife.
É um deleite ver o recorte da cidade, os armazéns do cais José Estelita, o recorte que os telhados sequenciados fazem com as torres das igrejas, num conjunto de rara beleza. Um deleite ver da água, a praça onde começa o mundo, os navios, o casario do porto, a Torre Malakoff, o prédio da delegacia fiscal, a capitania dos portos, o velho moinho...
A água como sentido e propósito.
De seu turno não há celebração possível sem um trago, a felicidade líquida de um cálice de um bom vinho ou as estrelas borbulhando do segredo dos abades. Das montanhas de Glasgow, para quem aprecia, dos regatos da Bélgica abastecendo a fermentação dos cereais, seja em que forma for – felizmente – a vida é líquida.

Tadeu Alencar é procurador da Fazenda Nacional e secretário da Casa Civil

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