sexta-feira, 27 de julho de 2012

Pólvora no sangue

ARTIGOS - OPINIÃO JC, 27/07/2012
P/Tadeu Alencar
"Haverá pólvora no sangue deste povo?" Fico imaginando o espanto da monarquia diante das notícias havidas da província rebelde, Pernambuco. Naquela parte do território as rebeliões explodiam como frutas da estação, como flores selvagens. Desde a sua gênese os homens sempre foram marcados pelo sentimento de vigília. Ora em defesa da terra, ora contra as injustiças de todos os quilates, ora hasteando um princípio, ora em defesa de um pensamento, um e outro combustível dos obstinados.
Pernambuco jamais seria uma província morna, indecisa, claudicante, de palavra flácida, de sorriso neutro, uma província ausente. Desde os primórdios foi ereto, digno, afirmativo, curvando-se tão somente para agradecer, jamais o fazendo como vassalagem, subserviência, muito menos para a mercancia que não honra a memória dos mascates, em aberta luta pelo que julgavam ser o seu merecimento. Sendo doce, Pernambuco sabe se fazer encantado, finamente enrolado, melado de goiabada, como a mais açucarada das iguarias. Sabe também ser duro, quando desafiado em sua fé. Sabe ser generoso, mas não tolera cavilações.
Desde tempos imemoriais que aqui os homens recebem lições de liberdade. Uma artesania afiada nos mosteiros e no casco das ostras, que revolução de verdade é sempre feita por padres rebeldes e pelos navegadores, que cultivam afinidades com as coisas do mar e sabem que, para desbravar um continente, "navegar é preciso". Durante 300 anos o Brasil foi uma enorme noite sem estrelas, acordado apenas pela inquietude de Pernambuco, seus assaltos de cólera, em cochichos conspiratórios e escolas de rebelião que faziam corar aos mensageiros da Corte. “É uma heresia coletiva, imperador. Crianças, velhos e mulheres, acompanham os homens no ofício da guerra, como se esta fosse a mais laboriosa das tarefas. É preciso reprimir para não alimentar a sublevação”. A conformação delgada de Pernambuco, sabem os senhores, é a expressão mais acabada do seu arraigado irredentismo. Foi duramente perseguido, expropriado, pilhado de suas riquezas, mas, quanto mais picotavam o seu território – as Alagoas, a comarca do São Francisco, os confins do Ceará, infestados de índios –, mais se afirmava a chama da sua coragem, mais homens imolaram o seu corpo para preservar a integridade do seu maior patrimônio: as azuladas insurgências. Quanto mais pretendiam negar-lhe a existência dos deuses em que acreditava, mais se esmerava em reverenciá-los.
O Seminário de Olinda era uma escola de facas, uma célula incandescente, as labaredas crestando as palmeiras seculares. Padres insones varavam noites tramando a marcha sobre o Recife, para instalar a república, desfraldar-lhe a bandeira branca, já que os costumes dos inquilinos do poder não se coadunavam com o espírito livre da cruel cidadela de pescadores.
Fico pensando o que teria movido o Padre Roma, Abreu e Lima, Frei Caneca, Domingos José Martins, Nunes Machado... Quem sabe, extenuados das explorações da imperial realeza, de vista curta, de míope percepção, tenham decidido por cerrar fileiras para derrotá-la. Para fazê-la engolir os seus preconceitos, os seus recorrentes abusos. E tal se deu porque nesta terra, de 30 azuladas bandeiras fincadas diante do mar como panteão libertário, em que os homens têm pólvora no sangue, a liberdade é a mãe de todas as coisas. Pernambuco brilha no firmamento do Brasil porque soube compreender a sua história de lutas. Devemos ter, pois, à moda de um amigo fraterno, as armas sempre limpas e carregadas.
Tadeu Alencar é procurador da Fazenda Nacional e secretário da Casa Civil

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