domingo, 21 de outubro de 2012

Carta à inocência

P/Tadeu Alencar, JC-Opinião, 21/10/2012

Caríssimo Glauco, não sei exatamente em que ano nos conhecemos. Talvez em 1973. Você era o menino bonito da turma. Pele clara, olhos fugazmente esverdeados, traços afilados, inteligente, fleugmático, conhecido. Tanto assim era que fui seduzido por seu charme e ficamos amigos. Minha infância está marcada pelo seu quarto, pelos seus brinquedos. Ontem ao falar-lhe senti o desfile de 30 anos de fantasmas. Quanta importância aquelas batalhas de bonecos, os soldados americanos, garbosos em seus uniformes e cavalos brancos. Lembro dos primeiros livros – “Éramos muito menos e muito mais que seis” – que nos abriram o fantástico mundo da literatura. Lembro do seu “kichute”, do seu andar diferente, nas romarias na Av. Dr. Floro, dos óculos escuros de aviador que até hoje protegem meus olhos. Nessa época eu nem imaginava a importância de Floro na história de Juazeiro. Tampouco poderia avaliar que Juazeiro era um lugar tão marcadamente especial. Por que não tínhamos aulas sobre milagres, beatos, cangaceiros, santos, revoluções, fanáticos e levitas? Possa lembrar da coroação da virgem em que a escola se postava em adoração e em que, ingênuo, apanhava as pétalas de rosa do chão para jogar novamente sobre a imagem de "Maria", quando alguém me repreendeu: - Não se joga à Virgem pétalas apanhadas do chão! Foi aí que vi que o mundo era diferente. Nada de ser espontâneo, simples, direto. Mas você era diferente: a sua sofisticação era atraente, sedutora. Lembro de quando fomos ficando adolescentes: a acne, os pelos, a música. Os melhores dias de férias eram os em sua casa. A casa nova e pelas estantes o Capitão América (azul), Thor (amarelo), Namor (verde), Hulk (verde), homem-aranha (azul e vermelho ). Hoje estão misturados com o cinza desfocado da distância. As cartas, as fotos, as namoradas, as pessoas, os amigos. Ah, os amigos! Viagem ao centro da terra foi a minha entronização no mundo dos adultos. Rick Wakeman, o primeiro profeta. Kraftwerk já nos falava de máquinas e de computadores. Tão longe, tão perto. Depois disso, acho que nos vimos menos do que merecíamos. Senti sua falta no meu casamento. Você foi o único que enxergou a minha mais entranhada vocação. Cativa-me a vida asceta, o silêncio das clausuras, a formação humanista dos seminários, o recolhimento dos conventos, a pregação de um Deus que se apiede de nossos aviltantes pecados. Outra parte são as ruas, as tabernas, os bordéis, a poesia, o Carnaval... Tudo em mim, num pobre corpo, no mais exauriente dos duelos, na mais intestina das antíteses. O Asceta e o toureiro. Meu bom e velho amigo, como é bom ouvir a sua voz, participar de sua inquietude, da sua mansidão, do seu comportado desespero. A vida " às vezes " é insípida como comida de hospital, como se nos alimentássemos de um bife estranho, no curso de uma moléstia incurável. Mas existe a arte. E ela nos salvará. A arte e os amigos lançarão raios de sol no estômago da alma e nos sentiremos aquecidos, quase saciados, com os olhos brilhantes e os lábios entreabertos diante da beleza das estrelas e de um sol que caminha sobre a terra, só para os que, como nós, vivemos escavando o solo que outros julgaram esgotado. Saiba que em Pernambuco, mais precisamente no Recife, nos Engenhos de Santana, onde ainda há pássaros, sapos e corujas, haverá sempre um conhaque forte e um velho tinto à sua espera. Se tiver vontade de matar alguém venha matar a sede que cometeremos o homicídio em massa de todas as tristezas.

 Tadeu Alencar é procurador da Fazenda Nacional e Secretário da Casa Civil

Nenhum comentário:

Postar um comentário