domingo, 21 de abril de 2013

Relógio de algibeira (P/Tadeu Alencar - JC, 21/04/2013)

Relógio de Algibeira

Quando a minha mãe, em 1975, fez cinquenta anos escrevi a ela uma carta que tinha o título: meio século! Ela se comoveu, agradeceu, abraçou-me e observou: só não gostei do título. Aquilo ficou roendo a memória, como o tempo roi a engrenagem de um carrilhão, como uma rede roi o armador em que se apoia. O que pensara eu ser uma vantagem, sobrepor-se ao tempo, vencê-lo, aos olhos daquela mulher jovem e madura, ao contrário, parecia queimar nas faces coradas, como uma brasa que se deleita em carne viva. Ora, ora, chegar a alguma medida de século haveria de ser um distintivo, um lugar honorífico, mas pesava mais que uma cesta de remorsos. Na época, eu tinha doze anos. Estava eufórico com o mundo - os olhos de espantação -, e era escolhido para do primeiro lanço da escada fazer a saudação de natal, boquiabertos - com tamanho atrevimento - os parentes recentes. Ontem, quando ela - D. Zuleica - telefonou-me para parabenizar pelo cinquentino aniversário, lembrei-lhe a história que nela já fora coberta pela névoa dos anos. Rimos, enquanto ela me abençoava e decerto coçava a conta do terço, inamovível em suas mãos. Aquilo me marcou.

De lá para cá andei com o tempo no bolso da calça, escondido entre os papéis da escola, entre as meias na gaveta, entre os postais de cidades que sempre me fascinaram. Andei com o tempo de rosto colado, sentindo o tépido hálito de suas narinas. E me perguntava: o que há com este velho senhor de suíças brancas, o tempo, que a tudo devora com sua língua de fogo? Esta bola de fogo da vertigem dos relógios, de quem se diz ser muito dissimulada, tem a forma de um cascalho no fundo de um rio goiano. Enganadora, é falsa a sua inocência e dúbia, plúrima, a sua volúvel personalidade. O que há com o tempo? Passei o resto da vida coçando aquele novelo de infindáveis veios entrecruzantes, aquele cascalho molhado que queima como contrariedade. A vida, descobri, é o tempo entrando nele mesmo, uma miscigenação entre corpo e espírito, como uma meia que se retira virando-a pelo avesso. Senhor e escravo. Passei a vida devorando as curvas do calendário. Passei o resto da vida esticando a pele no espelho, apalpando as rugas, curioso de ver as marcas que os séculos foram imprimindo na vizinhança do olho. E passando a observar o que acontecia com o rosto da minha mãe, resolvi ver como a vida se passava lá fora. Depois dos tempos de catecismo, vieram os de diatribes. Achava que o tempo na rua era feito de outra matéria e andava nas feiras para sentir como se vivia, que costumes cultivavam os homens, em que deuses depositavam confiança. Andei pelas feiras também para sentir o perfume das coisas alfazemadas.

Desde o título infeliz, o século partido em duas metades desiguais, aos cinquenta anos, com meio século de peso sobre as costas, vejo que há motivos de sobra para celebrar. Aprendi, num garimpo exauriente, suando o velho uniforme de quem lavra a terra, que envelhecer é, como os vinhos, libertar as virtudes, a fortaleza dos aromas. Aprendi também que as quatro estações da vida é estação única, a estação dos amigos, a única estação. Por isso, para que não me pesem os anos mais que a pontiaguda estocada dos relógios e dos calendários, nesse ritmo vertiginoso, entra ano, sai ano, desejo fazer um brinde à vida, a ter uma mãe que aos 87 anos olha o futuro como quem toca a eternidade. E para não se angustiar com o trote dos anos consultar a algibeira apenas pelo prazer de ver um belo relógio deslizar em suas mãos.

Tadeu Alencar é Procurador da Fazenda Nacional e Secretário da Casa Civil do Governo de Pernambuco

 

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